ÁGUA DE RASAS FONTES: Martinha

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Martinha

Para acreditar que isso é um milagre,

Não precisa crer em Deus.
Existem olhos para ver,
Ouvidos para ouvir,
Balança para pesar,
Metro para medir.

Luiz Humberto Carrião

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O OUTRO, O INTERMEDIÁRIO E EU

A flor do maracujá

Encontrando-me com um sertanejo
Perto de um pé de maracujá
Eu lhe perguntei:

Diga-me caro sertanejo
Porque razão nasce roxa
A flor do maracujá?

Ah, pois então eu lhi conto
A estória que ouvi contá
A razão pro que nasci roxa
A flor do maracujá

Maracujá já foi branco
Eu posso inté lhe ajurá
Mais branco qui caridadi
Mais brando do que o luá

Quando a flor brotava nele
Lá pros cunfim do sertão
Maracujá parecia
Um ninho de argodão

Mais um dia, há muito tempo
Num meis que inté num mi alembro
Si foi maio, si foi junho
Si foi janero ou dezembro

Nosso sinhô Jesus Cristo
Foi condenado a morrer
Numa cruis crucificado
Longe daqui como o quê

Pregaro Cristo a martelo
E ao vê tamanha crueza
A natureza inteirinha
Pois-se a chorá di tristeza

Chorava us campu
As foia, as ribera
Sabiá também chorava
Nos gaio a laranjera

E havia junto da cruis
Um pé de maracujá
Carregadinho de flor
Aos pé de nosso sinhô

I o sangue de Jesus Cristo
Sangui pisado de dô
Nus pé du maracujá
Tingia todas as flor

Eis aqui seu moço
A estoria que eu vi contá
A razão proque nasce roxa
A flor do maracujá

[Catulo da Paixão Cearense]

Quanta saudade do Grupo Escolar... De suas comemorações cívicas com a professora Amélia declamando de maneira magistral, A Flor do maracujá.

Quanta saudade da casa de minha avó... Na quaresma com todas as representações de Santos cobertas de pano na tonalidade da flor do maracujá.

Quanta saudade de um tempo... Que nos levava a acreditar que a felicidade provinha daquele sangue derramado no pé de maracujá.

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Meu cajueiro

“Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.

“Adeus, meu cajueiro! Até à volta!

“Ele não diz nada, e eu me vou embora.

“Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em São Luís, homem menino, lutando pela vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças...”

Era o primeiro texto do livro escolar que estudei após a alfabetização, O meu cajueiro, de Humberto de Campos. Hoje o tempo presente traz-me como memória do passado estas linhas marcando a saudade de minha infância, quando ainda não tinha preocupação em projetar o presente neste futuro em que hoje vivo.

Foram dias de beleza. Ternura. Aventuras. Estilingues. Gaiolas. Passarinhos. Preás. Mas também dias de tristeza. Dor. Vontades. Trabalho. Emulsão de Scoot. Calcigenol Irradiado. Almanaque do Jeca Tatu. Os primeiros acordes em um violão. O primeiro amor. A primeira desilusão. Dor que carregamos para o resto de nossos dias. Matinês dançantes. Serenatas. Descaminhos no amor. Mudança.

E aí no mundo novo que nos escolheu ou fomos escolhidos tudo é diferente. E quando chega a um determinado tempo, tomamos a consciência de que logo estaremos vencidos pela única certeza da vida. Então, na falta de uma lata de folha com o doce em calda dos primeiros cajus de nosso cajueiro, que ao menos mandou lembranças, somos tomados de assalto de que nos resta muito pouco. Muito pouco mesmo!